Idolize-me e eu desejarei ser humanizado
A essa altura você já deve ter imaginado que eu gosto muito de k-pop. Apesar de pra mim ser difícil sempre consumir coisas novas, se tem uma coisa que sempre gostei foi pensar e analisar, mas eu nunca tinha parado pra refletir com profundidade sobre essa arte que eu praticamente respirava.
Isso tudo mudou quando eu conheci o canal Quadro em Branco, que faz vídeos analisando todos os tipos de arte, cinema, quadrinhos e música. Conheci ele por causa dos vídeos sobre Maus, um quadrinho que conta a perspectiva de um sobrevivente do Holocausto, e também vídeos analisando o terror corporal de Junji Ito, coisas certamente desagradáveis mas que esporadicamente despertam minha curiosidade. Por isso que pra mim foi estranho encontrar ele analisando a estrutura e características do k-pop, mas foi ele que me trouxe essa noção de que a indústria não deixa o artista amadurecer, no seu vídeo “O BTS está mudando a indústria”. Eu desejava muito que houvesse mais conteúdo assim, mas como não tem, decidi criar o meu próprio.
O BTS, grupo muito incompreendido pela mídia ocidental, sempre possuiu essa característica “amorfa”, de um camaleão que poderia ser qualquer coisa. Todo mundo que não conhece o BTS tem certos preconceitos contra o grupo ao ponto em que se você mostra uma música ou vídeo eles dizem “isso é BTS?” E você simplesmente tem que olhar nos olhos deles sem saber o que responder porque você também não sabe o que é BTS.
A versatilidade do grupo permitiu que eles explorassem diferentes estilos e sons e esse foi um dos fatores que os levou a encontrar seu mercado musical, além de cultivar um relacionamento de lealdade com os fãs por conseguirem projetar qualquer imagem que quisessem. Não que eles fossem falsos em fazer isso mas simplesmente que navegar pelo espectro das suas personalidades realmente é a especialidade deles e é a sua maneira de se relacionar com as pessoas e o mundo.
No vídeo do Quadro em Branco ele começa falando sobre o anúncio que o grupo fez sobre seu hiato. Na época muita gente não entendeu porque eles estavam chorando e sendo tão dramáticos, mas isso é porque ninguém estava entendendo o que eles estavam dizendo de verdade. Eles literalmente estavam falando como não podiam falar o que queriam, um pensamento fraseado como “nós já esgotamos tudo que tínhamos pra falar”, mas que camuflava a verdade de que eles se adaptaram tanto ao que os fãs esperavam, aquilo que é agradável, bonito e sereno, que eles não conseguiam quebrar essa barreira, como o Quadro em Branco diz até admitir que eles estão cansados soa como uma ingratidão contra o público deles.
Eu falei no exemplo do ILLIT como a indústria pode ser tão controladora que manipula todos os aspectos da arte sem deixar espaço para ela crescer, mas aqui quero trazer outra reflexão que não é só a indústria que está sufocando a arte mas que ser esse camaleão, esse ídolo de uma imagem perfeita, que se adapta à expectativa dos outros, também limita a expressão do artista.
Eu sei por experiência própria o que é estar farto de tentar assumir controle e simplesmente se esvaziar de tudo que você é pra se tornar uma marionete da estrutura em que você vive, e isso pode ser k-pop, trabalho, escola, família, qualquer área da vida. O estranho é que pode parecer que você está se protegendo mas abdicar de sua individualidade e seus sentimentos é morrer, uma morte vazia e teroicamente eterna.
Muito se questiona como vai ser essa volta do BTS como grupo completo porque dependendo do que eles fizerem, e isso é óbvio, a trajetória da carreira deles vai ser mudada daqui pra frente. O maior medo é do tempo vencer e eles serem deixados de lado, algo do qual nem a lealdade do público poderia salvá-los. Essencialmente, todos os olhos estão voltados pra saber se eles vão se deixar morrer dessa forma ou se vão abraçar o caos e se comprometer com todos os excessos do k-pop.
Seria ingenuidade da minha parte dizer que eles nunca exploraram esses aspectos porque eles têm literalmente um álbum sobre essa jornada de autoconhecimento chamado Map of the Soul (ou Mapa da Alma), que aborda muitos tópicos da psicologia Jungiana. A música introdutória, Intro: Persona, escrita pelo líder do grupo RM, poderia facilmente ser o hino do BTS, já começando a com a frase “Quem sou eu? A pergunta pra qual eu não vou encontrar uma resposta por toda minha vida”. E eu encorajo você a ouvir a música antes de continuar lendo pois ela, subconscientemente ou não, fala de todos os conflitos entre a fama e o eu incluindo se sentir como se não merecesse todo o reconhecimento que conquistou.
Aqui a gente tem que entender a diferença entre Persona e Ego, porque a persona é a parte de você que você quer apresentar pro mundo. Ou seja, ele quer ser visto como alguém humilde, desajeitado, imaturo que não sabe o que está fazendo, esse que é ponto da música, por isso ele quer saber quem é, porque se perdeu no papel que criou pra si próprio. A gente pode ver isso nas outras músicas do grupo que, como eu comentei antes, é desprovida de um padrão e o crescimento deles se deve a essa flexibilidade, como se essas diferentes facetas fossem criadas pra aplacar o julgamento das pessoas ao redor. Como eu disse, não que necessariamente isso seja falsidade, mas que simplesmente todos esses lados e todos esses “eus” também são o RM.
Dito isso o que é estranho é que o próprio RM provavelmente sabe exatamente quem ele é, quando ele admite que reconhece sua sombra e que ela o persegue como uma onda de calor. A Sombra, que é a parte de você que foi reprimida voluntária ou involuntariamente, carrega todos aqueles sentimentos negativos que o mundo ao seu redor ensinou que não era apropriado e acabam não tendo espaço na sua identidade por causa da pressão externa. O único problema é que você nunca consegue realmente deixar de ser quem você é, nem fugir dos seus próprios pés.
Agora é a parte do texto em que eu percebo que eu provavelmente estava errado esse tempo todo em achar que o BTS não conhecia a si mesmo, pois o grupo sempre alternou entre sombra e persona com uma sutileza que é quase assustadora, “escondendo” partes da sua sombra na sua arte como um verdadeiro enigma ou mapa do tesouro (ou melhor, mapa da alma), como que realmente desejando serem encontrados.
A questão do por quê o ato de “falar” é tão importante, é porque no início de suas carreiras esse “barulho” contra o sistema era tudo que eles tinham, como uma forma de se extravasar, se libertar e conquistar atenção. Enquanto a trajetória do grupo foi, em grande parte, abandonar a imagem forte e forçada, muito desse barulho permaneceu, agora não necessariamente contra uma estrutura, mas voltado internamente, quase que pra retratar um barulho interno.
Na música Interlude: Shadow, a ambição que vem da sombra é apresentada e ninguém melhor pra falar sobre isso do que a pessoa que sempre foi mais sincera sobre suas ambições: SUGA. “Eu quero ser um rapstar, eu quero estar no topo”, são as coisas que ele começa nos contando depois dessa imagem de um espelho se reconstituindo, uma introspecção que revela um medo desses impulsos obscuros que crescem mais a medida que se vai mais longe. Mais fama, mais alto e com certeza: mais medo de cair, mas sem nunca abandonar a vontade por ainda mais, sem poder ignorar essa sede que desce ardendo.
Só tem um pequeno probleminha: ambição não é a sombra. A ambição, as conquistas, os prêmios, os números, a fama, o sucesso, os objetos de luxo são todos formas de compensar uma inadequação interna. Se esses seus impulsos reprimidos não são aceitos, você se sente mais sozinho, mais isolado e é consumido por um verdadeiro desespero, desespero pra ser ouvido e pra conseguir afirmação externa sobre a sua identidade.
Até que ponto você iria para ser amado? Moldaria uma mentira bonita? Se apagaria pra se tornar um boneco? O BTS criou todas essas obrigações para com seus fãs mas a dualidade que eu não entendo é como tanto o BTS se dobra pra agradar o Army (seus fãs) quanto o Army se dobra pra agradar o BTS, porque eles só estão presos na suas obrigações para com os fãs porque eles acreditam que os fãs tem obrigação para com eles. Até atrás dos seus sentimentos de gratidão estão possessividade e ganância e esse que é o problema real: eles são copos quase transbordando de sentimentos explosivos mas se recusam a aceitar essa sombra de si mesmos.
E não é como se eles pudessem se rebelar e culpar o motivo do seu silêncio nos fãs e na indústria porque eles também manipularam a indústria. O Army não deve desculpas simplesmente porque agem como o próprio BTS cativou o seu público pra ser, a ironia de cultivar certos perfis e atitudes na sua platéia e depois ficar confuso com as ações dela.
A verdade é que só se consegue realmente aproveitar o BTS se você não for fã deles. O Army vai endeusá-los independente do que eles fizerem, algo que eles juram que é amor e lealdade mas honestamente é o aspecto mais antiprofissional do k-pop. O artista quer aprovação, quer ser um ídolo e praticamente condiciona o seu público a tratá-lo assim e depois vem o paradoxo de que ele gostaria de ser tratado diferente. É a inconsistência absurda: idolize-me e desejarei ser humanizado, humanize-me e desejarei ser idolizado.
O que realmente me preocupa é como isso é agravado pelo público do k-pop que parece completamente alienado desses processos, tão acostumados com a ideia de “conceito” que quando os artistas lhe contam histórias absurdas, não sabem de onde aquilo vêm nem refletem sobre o que significa. São atingidos pela letra, pela melodia, pela performance mas completamente alheios à todas as sutilezas, realmente acreditando que tudo isso é apenas um teatro pra eles.
Todo mundo é louco pra tentar reproduzir a fórmula do BTS e quase ninguém sabe como começar mas é a mesma coisa que fez outros grupos fazerem sucesso: sinceridade e sentimento. Tudo que começou com aquele desespero adolescente mas que a gente carrega pro resto da vida: desespero por pertencer, por ser ouvido, amar e ser amado, preencher o vazio. Agora, é impossível ser sincero se você não se conhece.
Eu passei 17 parágrafos falando sobre o BTS apenas pra ilustrar o meu ponto que todo idol é assim, ou melhor, todo ser humano é assim. Imagine algo dentro de si que seja tão feio, tão desagradável, tão lacerante, que apenas olhar pra isso te faria enlouquecer. Não é só assustador, é lindo. Enlouqueça. Pra melhor ou pra pior, esse é o verdadeiro conhecimento do bem e do mal. Abrace sua sombra com um ar de atrevimento e desejo, sendo fiel a quem você é como se isso fosse sua verdadeira religião. Não acredito que a serpente mentiu para Eva, porque, verdadeiramente, isso é se tornar como Deus: conhecer a luz e as trevas, o amor e o medo.
Ídolo ou humano? Você quer ser um deus? Morda a maçã.
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