ILLIT, entre claro e escuro: A busca por identidade
Faz 11 anos que eu abandonei esse blog e a minha criatividade de escrever. Parece que quando criança tudo na sua cabeça é mais simples e direto, você sabe exatamente o que gosta e o que quer, mas quando crescemos nos tornamos escravos desses retângulos digitais, peregrinando pelos algoritmos como que procurando por algo, talvez até procurando por nós mesmos.
Sempre fui fascinado por histórias, e nos últimos 6 anos esse interesse foi satisfeito pela minha bolha de preferência, o k-pop. Entre as muitas coisas que encontrei na minha peregrinação, semana passada encontrei um certo número de vídeos curtos falando sobre a apresentação do ILLIT com o JYP em um festival. Pra você que parece que eu falei grego, calma. Eu sei que k-pop é um divisor de águas entre as pessoas, ou você ama ou você odeia, e na verdade entristece ver como todas as nuances artísticas desse estilo se perdem nessa briga.
Na verdade o k-pop pode parecer essa tendência recente entre garotas adolescentes, mas é um gênero se consolidou já há muito tempo, e que vem evoluindo em tamanho e qualidade desde a década de 90, na qual o JYP (Jin-young Park) foi um dos artistas pioneiros da época, e não só artista como um dos produtores que moldou todas as premissas de hoje do k-pop. Ele apostou todas as cartas que tinha na ocidentalização do som e era conhecido por misturar Hip-Hop e R&B nas suas músicas, algo que marcou a virada pro surgimento desse novo gênero tão nacional da Coréia mas ao mesmo tempo moderno e eclético. Mesmo fundando sua própria empresa e gerenciando novos artistas, JYP nunca realmente deixou de fazer música, e em 2020, ele lançou sua música “When We Disco”, que tinha esse som nostálgico e característico da era eurodisco dos anos 80.
Não foi exatamente algo inovador pra época porque outras músicas com pegada mais retrô também foram lançadas, mas essa música tem um caráter especialmente dramático, originalmente um dueto com a Sunmi, solista bem estabelecida na cena e que tem uma qualidade vocal suave mas que carrega esse ar misterioso e quase melancólico. Tendo isso em vista é surpreendente que o JYP tenha escolhido o ILLIT pra cantar essa música com ele no festival. O ILLIT, sendo um grupo que sempre se apresenta com uma identidade mais fofinha e radiante, num primeiro momento não parecia a escolha ideal pra esse tipo de música pois dificilmente essas meninas com seu ar tão vibrante e animado conseguiriam se equiparar ao papel da Sunmi no original.
A princípio, como o festival em questão não tinha tanto peso quanto outros gigantes na Coréia, a escolha parecia ser mais para promover o ILLIT, que tinha acabado de estrear em 2024, e também um necessário encontro das diferentes gerações do k-pop: o futuro com o ILLIT, que são as repercussões e desdobramentos mais recentes do gênero e o passado com o JYP, que foi um dos vanguardistas da cena. O JYP desenvolveu os métodos de treinamento dos artistas, que permite que eles alcancem excelência nas performances, mas em tempos recentes muito se fala sobre essas performances e houveram muitas críticas à artistas que supostamente “não sabiam cantar”. O ILLIT, por não ter passado pelo mesmo rigor técnico que outros grupos, foi pego logo no meio disso, sendo que a Moka recebeu a maior parte dessas críticas.
Na apresentação de When We Disco, logo de cara o grupo realmente parece incompatível com a música, mas a surpresa está no tom vocal de Moka quando ela canta na segunda parte da música, com uma voz quente e sombria, diferente de tudo que o ILLIT apresentou em suas músicas até agora. As partes que se seguem são mais graves e as integrantes cantam com uma qualidade que parece até muito mais misteriosa e dramática do que a voz da Sunmi. Por mais que o resto da performance pareça ter problemas de estabilidade vocal, tanto por parte das meninas quanto por parte do JYP, é impossível não se sentir satisfeito com essas partes mais escuras e hipnóticas da música.
A questão que permanece é: será que a empresa dessas meninas, a HYBE Labels, desenvolveu a voz delas pra um caminho completamente diferente de suas verdadeiras qualidades?
Quando o k-pop começou a chamar a atenção do Brasil, as pessoas reagiam às músicas e aos vídeos com grande confusão. Todas aquelas referências, cores, roupas não faziam sentido para muitos, mas essa era a exata magia que atraiu tantos pra esse mundo, o fato de que por trás daquilo existia um contexto que conectava tudo. Desde que o humano é humano tem uma coisa que sabemos fazer bem: contar histórias, e é assim que surgem os "conceitos" no k-pop. Histórias a gosto, do tipo que você quiser, pra se identificar e decifrar, adicionando profundidade às letras, produções e vídeos.
A aparência de um artista é considerada com cuidado por um empresa, não só por que se trata de uma indústria audiovisual mas também porque isso impacta muito em qual conceito eles podem ou não fazer. Ser escolhido por essas empresas é mais ou menos um jogo de você se encaixar no que eles buscam, pois não importa se você tem talento, afinal o lema do k-pop é criar talentos do zero. Artistas com aparência mais fofa são direcionados para grupo com conceito mais leve e refrescante, encorajados a incorporar papéis de possíveis namorados e namoradas. Enquanto artista com aparência mais matura são direcionados a grupos com temas sedutores e encorajados provocar e flertar com o público, mesmo se isso os deixar desconfortáveis. Ambos os casos, focam na objetificação do idol, nessa indústria em que o artista é o produto.
O conceito de ter um conceito é tão importante na cena que tudo se dobra ao redor dele: maquiagem, cabelo, roupas, dança, voz e até o próprio artista. No grupo Twice, Jihyo possui uma voz mais encorpada que as outras integrantes do grupo mas, principalmente no começo da carreira, buscava apresentar uma voz mais leve e fofa para encaixar com os temas das músicas. E, por mais que fosse líder vocal, sua companheira Nayeon recebia muito mais tempo de tela e linhas nas músicas simplesmente por ser compatível com o tom e imagem desejado pro grupo.
O aespa, na ânsia de ganhar reconhecimento como grupo novato, apostou suas fichas na voz magnética da Winter, fazendo músicas inteiras que favoreciam o tom dela mas negligenciavam o tom das outras integrantes. Esses são só alguns exemplos e é porque estamos falando só de voz, na verdade cada aspecto do produto é manipulado em prol daquilo que vai funcionar com o conceito e agradar mais o público. As empresas cada vez mais passam por cima das preferências e experiências de seus artistas em nome do que acreditam que lhes dará dinheiro, isso dá a impressão de que a exata coisa que tornou o k-pop tão atraente está agora sufocando o seu próprio meio de existência.
Não digo que as meninas do ILLIT estejam sendo forçadas a fazer o que não querem para uma companhia gananciosa e diabólica, mas quero trazer à luz a verdade de que a empresa lançou mão de desenvolver as verdadeiras cores e potenciais dessas artistas em troca do que parecia mais seguro para os executivos. Será que não está na hora do k-pop crescer e confiar nos seus artistas para produzir um conteúdo significativo e pessoal?
Saindo um pouco dos questionamentos sobre a indústria como um todo, o ILLIT foi muito acusado por supostamente copiar o NewJeans em muitos aspectos da produção. Não que seja possível um grupo ter direitos autorais sobre um conceito ou uma sonoridade mas se o problema é originalidade, porque a empresa não explora esses aspectos que o ILLIT já tem inatamente em vez de tentar recriar o sucesso de um grupo que fez sucesso justamente por ser original? Seria inovador esconder em um conceito leve e inocente um aspecto misterioso e magnético que refletisse essas qualidades das integrantes, a própria música delas “Cherish My Love” fala coisas como “você tem 3 segundos pra dizer se me ama ou não” e “seus sentimentos estão em segundo lugar, o que eu decido vem primeiro” que apesar do ar muito fofinho passa essa ideia muito forte de controle, como se elas escondessem uma natureza quase que assustadora e ao mesmo tempo irresistível.
Fazer alterações assim seria sutil mas muito desafiador, seu produtor, o Slow Rabbit, teria realmente que fazer seu dever de casa, mas ele seria ideal pra isso. Apesar que em matéria de conceitos dramáticos ele já produziu verdadeiros fracassos musicais como “LOSER=LOVER” do TXT ele também estava presente naquela fase inicial do BTS, que tinha uma música de aspecto muito mais pessoal e escuro, um desespero adolescente que apelou bem pro público da época.
A pergunta é se as meninas do ILLIT conseguem crescer junto com o conceito, ou melhor, se o conceito vai crescer junto com elas, se adaptando a medida que se desenvolvem. Mas então a pergunta real é se elas vão ter coragem de se aventurar dentro de si mesmas e crescer, e aí a frase que originou o nome do grupo seria seu lema: “I’ll be it” ou “Eu serei isso”, independente do que “isso” possa significar.
No mundo ocidental a gente escuta muito barulho de uma sociedade que prega tanto sobre liberdade e individualidade mas na qual ninguém sabe quem se é de verdade. Todo mundo quer provar algo pros outros e tem verdadeiro pavor de olhar pra dentro de si. Se já é assim em uma sociedade que tem o individualismo tão arraigado na cultura, imagina pra um lugar como a Coréia onde a conformidade e o coletivo são priorizados acima de tudo.
Todo artista tem algo a dizer mas eles praticamente se autocensuram ou são moídos por suas empresas. Se o gênero as vezes parece vazio de significado isso é porque falta coragem pra dizer o que precisa ser dito sem sutileza. O k-pop está à beira de um verdadeiro colapso: ou o público vai se entendiar de ouvir mas não escutar nada, ou os artistas vão divergir de todos os paradigmas do gênero e iniciar uma nova era em que todas as suas cores irão vazar.
Vão conseguir ter coragem pra se encarar no espelho? Vão cultivar expectativas saudáveis entre artistas e fãs? Vão alcançar independência artística dentro de suas empresas? Tudo isso depende de algo que ninguém pode medir, uma rebelião silenciosa e interna mas que é o tipo mais perigoso que existe: Bem-vindo à revolução da alma, anjo caído.
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